DEIXA VENTAR (LET THE WIND BLOW) | solo show | curadoria Pollyana Quintella | Galeria Meredes Viegas | Setembro 2019 | Rio de Janeiro

 

Gerard Richter costuma dizer que falar sobre pintura não é apenas difícil, como talvez até completamente sem sentido. Escrever sobre pintura é antes de tudo reconhecer a impossibilidade de dizê-la, reconhecer que a vocação língua é a sua insuficiência, e talvez por isso a procura por linguagens outras. Entre a palavra e a imagem fica sempre algum resto que não se sabe para onde vai. Fadados a fracassar, escrevemos sobre pintura buscando algum alinhamento com a sua gramática. E não podendo capturá-la, damos voltas ao seu redor, exercitando alguma dança possível.        

Nesta individual, Cela Luz apresenta uma série de pinturas que rearranjam fragmentos de paisagem. De pequenos formatos – que reforçam o pictórico como gesto íntimo – a pinturas maiores, somos imersos em perspectivas em movimento, horizontes que escapam como memórias fugidias. Cela opera com capturas temporárias, aparições e lampejos prestes a se reconfigurar, entre o referencial e a abstração. Aqui é tudo figura e já não é, imagens sacudidas pelo vento, chiados. vu-uu-uu! veee! vuum! vvvv!

Trata-se também de uma pintura sinestésica. A paleta luminosa, com a textura impositiva do óleo, por vezes sugere cheiros, sabores, deleites impressos na imagem. Uma boca se enche d’água diante das gordas Jabuticabas, enquanto A Noite na Estrada nos atravessa com um golpe de ar. É qualidade do óleo produzir tangibilidade sobre aquilo que descreve. Embora a pintura produza versões do mundo, ela define o real como aquilo em que se pode por as mãos, oferecendo brilho, solidez. Ver nos ensina também a tocar, possuir. Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis. Talvez a pintura não falsifique a realidade, mas a realidade falsifique a pintura.  

E se o gênero da paisagem esteve vinculado ao que há de sublime e monumental, as imagens de Cela vem da memória, reivindicando o horizonte no que há de íntimo, onírico, menor (“menorme”, como quer José Paulo Paes). Embora seja possível vez ou outra reconhecer um jardim ou uma queda d´água, essas composições desafiam nossa familiaridade, já que estão descoladas de qualquer geografia. A praça que serve de referência para uma pintura poderia estar em qualquer lugar do mundo. Curiosamente, são pinturas entre a vocação arquetípica – produzindo um certo senso universal - e o delírio infantil, ávido em brincar com a realidade. O que fazemos diante desses fragmentos é justamente vincular nossos próprios referenciais ou, ao avesso, afrouxar seus significados, suspender a precariedade do real. 

“Aprendi a viver em pleno vento”, diz Sophia de Mello Breyner em um de seus poemas. A pintura de Cela Luz caminha com essa lição: chacoalha horizontes, deixa ventar.
 
Pollyana Quintella *
 

Pollyana Quintella é curadora assistente do Museu de Arte do Rio e pesquisadora independente. Formou-se em História da Arte pela UFRJ e é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa. Atuou na equipe de curadoria da Casa França-Brasil (2016),  foi coeditora da revista USINA e curou exposições em instituições e espaços independentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, com especial interesse para a interseção entre poesia e artes visuais.


 

Gerard Richter once said that talking about painting is not only difficult but perhaps even completely meaningless. Writing about painting is, first of all, recognizing the impossibility of saying it, that the language vocation is its insufficiency, and perhaps, for this reason, the search for other languages. Between the word and the image, there is always something that is not known where it goes. Doomed to fail, we write about painting looking for some alignment with its grammar and not being able to capture it, we go around it, exercising some possible dance. 

In this solo show, Cela Luz presents a series of paintings that rearrange landscape fragments. From small formats - which reinforce the pictorial as an intimate gesture - to larger paintings, we are immersed in moving perspectives, horizons that escape like fugacious memories. Cela operates with temporary captures, apparitions, and flashes about to reconfigure, between the referential and the abstraction. Here it is all figures and no longer, wind-shaken, wheezing images. Vu-uu-uu! see! vacuum! vvvv! 

It is also a synaesthetic painting. The luminous palette, with the imposing texture of the oil, sometimes suggests smells, flavors, treats printed in the image. A mouth fills with water in front of the fat “Jabuticabas”, while “Night on the Road” strikes us with a blow. It is the nature of oil to allow tangibility about what it describes. Although painting produces versions of the world, it defines the real as what you can get your hands on, offering brilliance, solidity. Seeing also teaches us to touch, to possess. Pliny, the Elder, spoke of birds trying to peck at the fruits painted by Zeuxis. Perhaps the painting does not distort reality, but reality distorts the painting. 

If the genre of landscape was linked to the sublime and monumental, Cela's images come from memory, claiming the horizon in what is intimate, dreamlike, minor (“menorme”, as José Paulo Paes wants). Although it is sometimes possible to recognize a garden or a waterfall, these compositions challenge our familiarity, since they are detached from any geography. The garden that serves as a reference for a painting could be anywhere in the world. Curiously, they are paintings between the archetypal vocation - producing a certain universal sense - and the instinct delirium, eager to play with reality. What we do when we face these fragments is precisely connect our own frameworks or, inside out, to loosen their meanings, to suspend the precariousness of the real. “I learned to live in the wind,” says Sophia de Mello Breyner in one of her poems. Cela Luz's painting goes with this lesson: it shakes horizons, let the wind blow. 

Pollyana Quintella *


* Pollyana Quintella is an assistant curator of the Rio Art Museum (https://museudeartedorio.org.br/) and an independent researcher. She graduated in Art History from UFRJ and holds a master's degree in Contemporary Art and Culture from UERJ, with research on the critic Mário Pedrosa. She was a curator of Casa França-Brasil (2016), co-editor of USINA magazine and curated exhibitions at independent institutions and spaces in Rio de Janeiro and São Paulo, with a special interest for the intersection of poetry and visual arts.